De longe a longe, à maneira de agradável passatempo, dou-me à leitura de velhos testamentos. Não a faço por contágio da doença muito em voga, de coleccionar antigualhas, senão que por estar convencido de terem fontes úteis de vária informação. Além de possibilitarem o conhecimento da personalidade dos testadores, podem ajudar a definir o carácter dos ambientes sociais em que decorreu a sua vida.
Há uns anos deram-me a ler o testamento do P.e Simeão Lopes Barbosa, da freg.ª de Lagares, já nosso conhecido, como irmão que foi de Valério Barbosa. Trata-se de um documento curioso, feito na cidade do Rio de Janeiro e nela aprovado, no escritório do Tabelião Custódio da Costa Gouveia, a 18-7-1741. O P.e Simeão estava em vésperas de regressar à metrópole numa «prezente frota». Resolveu fazer o testamento «por se temer da morte e por desejar pôr a sua alma no caminho da salvação». Depois de um formoso preâmbulo, que é uma firme e clara profissão de Fé católica, declara não ter herdeiro forçado «senão seu irmão Valério Barbosa», a quem deixa os seus haveres com certas obrigações a cumprir, que interessa especificar. Manda repartir nove mil e seiscentos reis pelos pobres que acompanharem seu corpo à sepultura; entregar igual quantia (à Irmandade do SS.mo Sacramento e outro tanto à Confraria do Senhor dos Passos, «da freguezia donde nasci». Mais quer que se mandem «dizer» quinhentas missas pela sua alma e igual número pela alma de seus pais; quinhentas «por quem tiver contas consigo» e outras tantas «por todos os amigos e inimigos». O irmão Valério há-de tirar da herança quatro mil cruzados para compra de bens de raiz, com os quais constitua património dos filhos, cujo rendimento será destinado a «sustentá-los no estudo»; caso assim não aconteça, «passará o dito legado à Santa Casa da Misericórdia de Arrifana». Fazendo uma estimativa do que possui, calcula que deve andar por uns «quatorze mil e quinhentos cruzados».
Depois de tanta generosidade com a família, com os amigos, e até com os inimigos - que terá deixado o P.e Simeão a um seu escravo negro, chamado Salvador? Ele mesmo vai responder com as palavras escritas no seu testamento: «levo hum negro que tenho, por nome Salvador, e por minha morte o deixo ao Convento de Santo António de Arrifana, para servir o dito convento emquanto for vivo». O Salvador teria vocação para irmão capucho? Creio que não. No entanto, a culpa de tal disposição testamentária não se deve imputar propriamente ao P.e Simeão, mas antes a ideias sociais deformadas, com séculos de existência.
MONAQUINO