Devido a jeito de espírito que me veio de nascença, mal posso observar panorama actual sem que não me apareça de permeio qualquer visão do passado. E é de tal feição às vezes que me torna alheio a importantes realidades presentes. Defeito ingénito, não lhe descubro remédio!
Isto vem para dizer que o singular fenómeno se havia de verificar comigo naquele dia 21 de Junho, deste ano corrente. Sucedeu então que me encaminhei para a igreja da Misericórdia de Penafiel na disposição de viver em plenitude aquela hora festiva —em íntima união com a distinta assembleia presente —, mas o estranho pendor de alma a que aludi e me acompanha para toda a parte, não me consentiu realizar plenamente tão elevado propósito. Em vez de permanecer só atento à memorável celebração — Deus me perdoe! — o meu espírito andou a vaguear por muito longe daquele momento inolvidável, que teve para a cidade e concelho categoria de histórico. Que ror de coisas velhíssimas se haviam de apoderar da minha imaginação em conjuntura de tanta solenidade... De tudo o que mais me impressionou foi ver surgir ante meus olhos todas as figuras do passado que deram contributo valioso para a vida e esplendor daquele templo e robusteceram, ao longo dos séculos, a solidez da Santa Casa da Misericórdia. Apareceu-me em primeiro lugar, a pessoa veneranda do fundador daquela igreja. Que dignidade de porte a do Abade de Ermelo em quem se espelhava com limpidez toda a vincada nobreza da sua personalidade de sacerdote de coração magnânimo e de ilustre homem letrado! Lá o vi assistir em 12 de Maio de 1622 ao lançamento da primeira pedra do templo da Misericórdia. Mais o vi em 1631, no dia da inauguração, a contemplar, sem jactância, a obra que fizera erguer e escolhera para lugar da sua jazida e também da família. Transportei-me em espírito à freguesia de Ermelo a admirar a fertilização daquelas terras áridas irrigadas um dia pelo dinheiro que despendera em seu favor. Ainda o vi finalmente a escrever o longo testamento em que deixou deposta nas mãos da Santa Casa de Penafiel a imensa fortuna de que fora possuidor. Na verdade, em tempo algum, houve maior benfeitor da Misericórdia que o P.e L.do Amaro Moreira de Meireles.
Na companhia do Abade do Ermelo estava uma multidão de seus parentes próximos, seculares e eclesiásticos de várias ordens — tudo gente muito grada —, mesmo de terras distantes, por onde se ramificara a frondosa árvore dos Moreyras e Meyreles. Transparecia-lhes no rosto certa ufania de pertencerem à mesma linhagem do Padre licenciado fundador da igreja da Misericórdia. Como Administradores da Santa Casa e das formas mais diversas todos ajudaram a levantar muito alto o nome de Arrifana de Sousa e o prestígio e benfazer da Misericórdia de Penafiel.
MONAQUINO
In jornal Notícias de Penafiel, 1970-07-03, p.06