No quadro esfumado da minha memória já cansada - bem-parecida com a luz mortiça da nossa candeia velha - permanece muito viva a lembrança de um acto ritual que se repetia todos dias nos ambientes familiares de meu tempo de menino e moço. Era a acção de graças depois de acabar a ceia. A ela presidia o pai de família, à maneira patriarcal, com todos os seus em redor. É pena que nenhum pintor fixasse na tela motivo de tão rara beleza. Rendidas graças a Deus pela vida e sustento daquele dia, começava-se uma invocação de vários santos, em tom de litania abreviada. A um rogava-se o livramento dos maus vizinhos à porta e dos ferros de el-rei (sic); a outro a protecção dos que andavam sobre as águas do mar; ao mártir S. Sebastião, que nos livrasse da fome, peste e guerra; ao milagroso S. António pedia-se a guarda dos nossos bichinhos e de quantos possuísse o nosso próximo. Largueza de espírito e coração: rogava-se para nós e para os outros. Autêntico Cristianismo! Como estamos em vésperas da festa de S. António insistentemente me acode à lembrança o nosso glorioso Santo - muito nosso pela origem do seu nascimento e devoção do povo português; do mundo inteiro, pelo amor que votara a todos os homens, sem distinção, e a correspondente veneração que granjeou em toda a parte. O passo da sua vida que mais me edificou sempre foi aquele gesto de profunda humildade que o levou a trocar a opulência do Mosteiro de S. Cruz, em Coimbra, pela penitente e mendicante condição de frade de S. Francisco, no conventinho dos Olivais. Santo de ciência tamanha e tão excelsas virtudes - historicamente bem comprovadas - jamais haverá perigo de ser eliminado do calendário da Igreja. Agora reparo eu que estou para aqui a exibir uma espécie de manta de retalhos mal cerzidos, qual sermão barato, que ninguém me encomendou. Desculpai. Ao princípio propunha-me falar da poesia, da lenda e folclore com que o povo enfeitou, a seu modo, a vida e pessoa do nosso Santo. Perdi-me no caminho e já agora não atino. A quem for mais interessado na aludida matéria, que tanto abunda na nossa terra, recomendo-lhe O menino de Yalga que o A. Miranda, que Deus haja, escreveu em 194. A sua leitura é proveitosa.
COM A COLOBORAÇÂO DO