Terça-feira, 7 de Setembro de 2010

Haverá de certo quem nunca tenha visto uma liteira em museu ou antiga casa fidalga, conhecendo-a sòmente de velhas histórias que se contam ou de algum estudo acerca dos meios de condução utilizados pelo homem desde remotas eras. Se houver alguém que não saiba do que se trata, poderá valer-se dum vulgar dicionário onde estará definida como espécie de cadeirinha portátil, coberta e fechada, sustentada por dois varais compridos, levada a braço por dois homens ou conduzida por duas bestas, uma atrás, outra adiante. Como nota bem característica, acrescente-se ainda um conjunto de campainhas estrídulas, cujo alegre telintar tanto deleitava o ânimo de Camilo nas frequentes digressões que fazia em liteira, por terras do Minho e Trás-os-Montes. Veio-me agora à lembrança ter ouvido dizer que certo amador de velharias, depois de ter lido, na mocidade, Vinte Horas de Liteira, sonhara jornadear um dia na cadeirinha portátil, desde a póvoa de OveIhinha, no Marão, até portas a dentro da cidade do Porto — talqualmente o itinerário percorrido pelo romancista, em vinte horas, na companhia do seu amigo António Joaquim. O simpático moço de então não chegou a realizar tal intento com receio de lhe faltar coragem para enfrentar a zombaria da gente ignara, obstinada em não reconhecer o valor documental e o encanto poético das coisas do passado.

Liteiras dos tempos idos, de quantos acontecimentos alegres e tristes não fostes vós testemunhas!
Transitaram elas ao longo das estradas velhas da nossa terra e por caminhos ínvios que davam acesso a povoações isoladas entre montes. Não se estranhe abonar isto que acabei de dizer com o testemunho colhido num assento do antigo registo paroquial de Peroselo, do ano de 1757. Encontra-se no L.o 3, fls. 195 v. Transcreve-se aqui, em grafia actualizada. É do seguinte teor:
O Rev. Jerónimo Rodrigues Lopes, natural de Peroselo e assistente actual que era na cidade do Porto, onde enfermando de uma grave enfermidade, depois de nela receber os sacramentos, reverteu em uma liteira para esta freguesia, onde chegou na noite de vinte nove de Novembro para os trinta do dito mês, do ano de mil setecentos e cinquenta e sete, onde sendo chamado pelas sete para oito horas da manhã, para examinar se necessitava de Sacramentos, me disseram não estava já em termos da repetição da Sagrada Eucaristia, e indo logo para lhe repetir o da Extrema-Unção me vieram ao caminho dar recado que tinha expirado e que fora absolvido por um sacerdote vizinho. Foi sepultado na Capela da Senhora da Conceição e ficou seu pai António Lopes obrigado aos bens de alma.
O P.e Jerónimo R. Lopes nasceu em Quintã, onde moraram seus pais — António Lopes e Maria Pereira, casados a 17-11-1703. Era sobrinho do P.e Manuel Rodrigues, irmão do seu pai, e neto paterno de Manuel Lopes, oriundo da Casa de Pegas, casado com Ângela Rodrigues, de Quintã, em 10-8-1661.
O P.e Jerónimo vivia no Porto quando enfermou da mortal doença. Regressou à terra natal numa liteira... para morrer dentro de pouco tempo, após a chegada.
A surpresa de encontrar uma liteira em Peroselo, vinda daquela cidade, em meados do séc. XVIII, como que se dissipou em mim sob a impressão dolorosa das circunstâncias dramáticas determinantes da jornada e subsequente falecimento do P.e Jerónimo Rodrigues Lopes.
MONAQUINO
In jornal Notícias de Penafiel, 1971-09-03, p.04

 



publicado por candeiavelha às 06:18 | link do post

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