Como é já do nosso conhecimento, o P.e Henrique, da Casa da Roçada em Parada de Todeia, dá-nos no seu manuscrito genealógico uma visão de conjunto da vida e obras do Cón. Moreira de Peroselo. A natureza do assunto versado pedia isso mesmo. Ao entanto, o autor não deixou de intercalar a respeito dele um ou outro pormenor, muito sintético, que empresta na verdade pitoresco realce à singular personalidade do Rev.mo Cónego. Além dos mais já observados, conta-se o que escreveu acerca do género da sua indumentária de cotio. Isso tem certo interesse, de maneira que transcreve-se aqui:
«Constava o seu vestido de camisa de estopa grossa, gibão e calções largos de pano grosso, meias grossas de lã, capa tosca com fita (...) e um chapéu grande sem presilhas».
Vestimenta algo esquisita para um Cónego da Catedral! Entretanto, se não era traje de gala, também não devia ser destoante do modo de trajar das classes populares, em meio citadino, naquele tempo. Demais, a avaliar por certas extravagâncias na maneira de vestir em nossos dias, até seria figurino muito de aproveitar para certas elegâncias (não eclesiásticas) dos tempos que vão correndo... Agora, o que julgo deva ser notado, é a qualidade «grossa» das vestes, nada propícia à moleza dos sentidos e muito menos ao seu regalo. Que admira isso numa vida «que toda foi muito penitente»!
Os encómios de Mor.a da Cunha, em louvor da «prodigiosa vida» daquele membro prestigiante do Cabido da Sé do Porto, — atingem o acúmen quando justamente nos diz que ele «era, por antonomásia, chamado Cónego Santo». Santo Cónego de verdade! Tão formoso foi o seu viver cristianíssimo como faleceu santamente da vida presente — nas casas da sua morada, a S. André, extra-muros da cidade do Porto — «com muitos sinais de predestinação».
No testamento que deixou, havia ordenado «que seu corpo fosse enterrado no Adro da Capela de S. André». Aconteceu, porém, que «alguns dos Cónegos» — com certeza pela muita amizade e veneração que lhe votavam — não acharam bem tal disposição; pois não descansaram sem «o desviarem desse intento». Para comprazer com os respeitáveis colegas, «fez um codicilo em seu testamento, em que determinou fosse sepultado na mesma Sé, em o Arco-Cruzeiro, adonde foi sepultado aos 12 de Fevereiro do ano de 1730, tendo falecido aos 11 do mesmo mês, com evidentes sinais de predestinado».
E desta maneira estamos chegados ao fim do esplêndido testemunho que nos legou o P.e Henrique acerca da pessoa veneranda do Cón. Manuel de Peroselo.
Antes de me despedir até a próxima semana, ainda queria fazer um curto acrescento ao que fica dito.
Várias vezes tenho pensado que neste santo Cónego andou encarnada, não sei bem como, uma alma de ermitão medievo, — daqueles ermitães que viveram outrora pelos montes da nossa terra (segundo documentação, citada aqui, vai em dois anos, havia-os dessa espécie ou semelhantes, ainda no começo do séc. XVIII). Eram varões que consumiam a vida, lá nas alturas montesinas, a louvar de continuo o Senhor Deus, dia e noite, e a rogar-Lhe as melhores bênçãos para todos os irmãos — homens, não esquecendo fazendas e gados — tudo sem distinção!
Em verdade, ele não fora Cónego ao modo da época florida, palaciana e cortesã de setecentos. Varão ilustrado (basta lembrar que frequentou a Universidade de Salamanca e permaneceu 12 anos em Roma); conhecedor de muitas e variadas gentes e terras («mui distantes e remotas», que percorreu sempre «a pé»); — este homem, forte de alma e de corpo, passara grande parte da sua vida «recolhido» em S. André, a orar a Deus («para ele o tempo era pouco para a oração»), a dar-se a dura penitência («se abstinha de tudo que era regalo»), e a «remediar» toda a sorte de necessitados, quaisquer que eles fossem! Digam-me agora, Senhores, como hei-de eu deixar de gostar deste Cónego de Peroselo?
MONAQUINO
In jornal Notícias de Penafiel, 1971-05-28, p.04