No «anno do Nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil sete centos e oitenta e sinco annos, aos quinze dias do mes de Mayo do dito anno» um escravo, chamado António José - «preto de na ção da Costa da mina» - recebeu uma carta de al forria que lhe foi passada «nas mo radas» do tabelião Paulino José Bar bosa, sitas na ci dade de Penafiel. Libertou-se da escravidão graças à sua natural esperteza e sobretudo à generosidade e honradez de carácter de um homem abastado da freguesia de Croca. Desconheço a data e o modo por que veio para o nosso país: natural mente como tantos outros escravos - talvez trazido da Costa da Mina por algum negreiro... O certo é que em dada altura da sua vida o António José era propriedade de um cidadão de Penafiel, por nome Manuel Ramos, que resolveu transaccioná-lo, à laia de quem vende uma mercadoria qualquer. Por via disso, o pobre do homem foi parar às mãos de um tal António Soares, morador em S. Tomé de Canas - ainda então freguesia, com auto nomia eclesiástica. Pelos vistos, o novo patrão também não primava nada em sentimentos de humanidade. Na posse de tão descaroável senhor, o negro não via artes de se libertar de suas impertinentes exigências e muito me nos de obter carta de alforria. A sagacidade de que era dotado ministrou-lhe o expediente que o havia de condu zir ao almejado resgate. O escravo António José em boa hora foi entender-se com um proprietário da freguesia de Croca - «morador na sua quinta de Valbom» - de nome Manuel José Borges, a fim de conseguir resolver o problema da sua libertação. Desse encontro resultou um «pacto» entre os dois pelo qual Manuel José Borges se comprometeu a livrar o escravo da opressão de António Soares - mediante uma compra - «debaixo da condição» de lhe permitir que «adquirisse, pello seu trabalho e esmolas, o mesmo preço do seu resgate». Assim ficou combinado e talqualmente se cumpriu. Em 15-5-1785, Manuel José Borges - que de tudo fora «pago e entregue e satisfeito na forma do seu ajuste» - veio declarar pe rante o tabelião que «prestava toda a liberdade ao mes mo preto António José e havia por quite e livre do cati veiro em que se achava para elle poder hir tratar da sua vida na forma que milhor lhe parecesse». Chegada a hora da sua alforria, o negro da Costa da Mina, exube rante de alegria e reconhecimento, «rendia ao mesmo seu Senhor os devidos agradecimentos pella esmolla que lhe fizera...».
Antes de terminar, não será despropósito lembrar mais uma vez que isto acontecera no último quartel do sec. XVIII - o século do iluminismo.
MONAQUINO
In jornal Notícias de Penafiel, 1969-08-01, p.01