Os tempos vão assim mesmo: não se pode contar hoje com sossego em nenhures, tal o imprevisto da mutação brusca das coisas. Estava eu posto em recolhimento na Capela do S.or dos Passos, na Matriz, a acompanhar em espírito as andanças pelo mundo dos Garceses de Arrifana e a fazer as contas da acção prestimosa exercida por eles em sua terra natal, senão quando circunstâncias de momento me vêm impor busca de nova pousada — embora me ficasse o propósito de lá voltar outra vez! Em face da intimativa, pus-me a caminho das Chãs com mira num recanto silencioso do interior da Misericórdia — hábito já muito velho não me dispensa da clássica composição de lugar. Uma vez ali, logo me aflorou à mente novo tema de meditação. Foi um nunca acabar de lembranças atinentes à história gloriosa da confraria da Senhora do Amparo (Senhora, tão formosa em vosso nicho, volvei a todos nós um olhar misericordioso que há-de ser amparo seguro em nossas aflições).
Quer o leitor vir comigo, a modos de romeiro do passado, percorrer de novo a longa jornada que fiz naqueles momentos recolhidos de então? Venha daí, não se atrigue — que há-de gostar.
Será bem começarmos pela fase pré-histórica da Misericórdia, recuando à Meia-Idade. Veremos, a essa distância no tempo, multidão de viandantes, diversos na idade e condição, dirigirem-se do litoral às províncias das Beiras e Trás-os-Montes, — das regiões do Sul, a caminho dos santuários minhotos e de Santiago de Compostela. Transeuntes de ida e volta, mormente em certas épocas do ano, com destino a feiras e romarias — mercadores e peregrinos, gente abastada à mistura com mal remediados e mendicantes que iriam bater muitas vezes à porta da Albergaria do Espírito Santo, em busca de repoiso e sustento (nomeada esta no ano do Senhor de 1329—cf. Memórias do M.ro de Bustelo—Fr. A. Meireles, ms., fls. 44 v.). A propósito se recorda aqui a albergaria e capela da mesma invocação, fundada por D. Mafalda, ambas ainda de pé — embora muito mudadas de finalidade e feições — existentes em S. Nicolau de Canaveses, à margem da velha estrada, talvez do tempo dos romanos, que dava acesso às gentes caminheiras para terras de Além-Tâmega e território beirão. A extensa teoria de toda a sorte de viandantes de antanho havia de comunicar uma nota pitoresca de cor e movimento à vetusta Arrifana e constituir para ela novo acrescento de progresso. Não acha, leitor, que estará neste ponto um dos factores principais do desenvolvimento do nosso burgo? Encruzilhada de caminhos muito importantes, havia de tornar-se centro apreciável de convívio social e terreno propício à génese dos mercadores que sempre aqui abundaram. Queria ir mais longe e mais fundo, mas a tanto não me abalanço agora. Companheiro amigo, vamos repoisar na Albergaria do Espírito Santo onde havemos de cobrar forças para nova caminhada?
MONAQUINO
In jornal Notícias de Penafiel, 1970-06-12, p.06